O príncipe, a lenda, a altitude e uma glória inesperada

O príncipe, a lenda, a altitude e uma glória inesperada

Na sequência de especiais sobre a Copa América, relembre o histórico título da Bolívia de 1963

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A Copa do Mundo de 1950 pode ter sido dolorosamente marcante para os brasileiros, mas também acabou o sendo para os bolivianos. Com as desistências de Portugal, antes mesmo do sorteio, e da França, posteriormente, devido aos longos deslocamentos entre os estádios do torneio, o Grupo 4, desfigurado, foi composto somente por Uruguai e Bolívia. Um único jogo, uma única chance para ambas as equipes.

No único jogo da Bolívia na Copa de 1950, o Uruguai massacrou: 8 a 0. (Foto: Reprodução)
No único jogo da Bolívia na Copa de 1950, o Uruguai massacrou: 8 a 0. (Foto: Reprodução)

Pouco mais de cinco mil pessoas testemunharam, no Estádio Independência, em Belo Horizonte, o humilhante 8 a 0 da seleção uruguaia sobre os andinos. Uma das maiores goleadas da história da competição. A Bolívia disse adeus, e o Uruguai avançou. Lideraria ainda o quadrangular final ao bater o Brasil no episódio do Maracanazo e ficaria com a taça.

62 anos depois, outro 8 a 0 entraria na memória dos andinos. Nas oitavas de final da Copa Libertadores de 2012, deu Santos contra Bolívar. Em La Paz, 2 a 1 para os donos da casa. No Brasil, os santistas, liderados por Neymar e Ganso, devolveram com o impiedoso placar. Três anos antes, a seleção boliviana havia massacrado a Argentina de Messi em casa: 6 a 1 na capital do país.

É notória a força boliviana na altitude. E mais ainda suas fraquezas fora dela. Colômbia, Equador, Peru e Venezuela também têm boa parte de seu território composto por altas montanhas, mas contam com alguns vales, onde normalmente estão as cidades povoadas. A Bolívia também é assim. O problema, contudo, é que sua altitude mínima está na casa dos 2.000 metros.  E a média é de 3.500. Muito superior à dos vizinhos. Não à toa, o país é por vezes chamado de “Teto da América”.

Isso pode explicar a dependência deste fator no sucesso dos times locais e da seleção nacional. Adaptados à geografia da região, os atletas nativos não costumam sofrer tanto de falta de ar, de cansaço ou de dores de cabeça na prática do esporte. E, se sentem, sabem como se poupar em campo. São fatores físicos, e nunca técnicos.

Em 2011, 48 anos depois, heróis de 1963 se reencontraram para relembrar título (Foto: Reprodução/Jornal La Patria)
Em 2011, 48 anos depois, heróis de 1963 se reencontraram para relembrar título (Foto: Reprodução/Jornal La Patria)

Não seria tão espantoso se a Bolívia sediasse uma Copa do Mundo e conquistasse o troféu. Algo que provavelmente nunca acontecerá. Mas, ao menos, há um precedente interessante: O Campeonato Sul-Americano de 1963.

Foi a primeira vez que o país sediou o principal torneio entre seleções sul-americanas – hoje chamado de Copa América. E, daquela edição, saiu o único título de grande expressão boliviana no futebol masculino profissional. Vale lembrar que em 1997 os bolivianos também sediaram o torneio e fizeram uma campanha digna – vice-campeões, perdendo a final para o Brasil.

A conquista começa muito antes, no fatídico 1950. Ao ser eliminada, a Bolívia perde a chance de enfrentar a Seleção Brasileira, e o time canarinho não consegue se impor diante dos uruguaios em pleno Maracanã. A derrota marcaria para sempre a história daqueles jogadores, independentemente de seus feitos nos clubes brasileiros.

Danilo Alvim, o "Príncipe", foi ídolo do Vasco e da Seleção - ao menos até a Copa de 1950 (Foto: Reprodução)
Danilo Alvim, o “Príncipe”, foi ídolo do Vasco e da Seleção – ao menos até a Copa de 1950 (Foto: Reprodução)

No meio-campo da Seleção, o cabeça de área era Danilo, mais tarde conhecido como Danilo Alvim, e apelidado de “Príncipe” – por sua elegância e classe em campo. O volante marcador, mas muito técnico, antecessor de Didi, era um dos pilares do esquadrão vascaíno das décadas de 40 e 50, que ficou conhecido como Expresso da Vitória, provavelmente a maior equipe da história do Vasco e a grande potência brasileira da época.

Mesmo com tamanha importância, Danilo não escapou das críticas. Não bastou o Vasco, base da Seleção, vencer o Peñarol (duas vezes) e Nacional em amistosos no ano de 1951. O time passou a ser chamado de velho, fez campanhas fracas no Carioca e no Rio-São Paulo, apesar de calar as cornetas com o título estadual de 52, quando começou a desintegração da equipe.

O Príncipe certamente estaria entre os atletas mais idolatrados do futebol brasileiro caso o desfecho de 50 fosse diferente. Não foi, e o volante teve um final de carreira melancólico. Trocou o Vasco em 54 pelo Botafogo, chegando já desacreditado, e pouco conseguindo fazer. Sem conquistar títulos pelo Glorioso, que vivia a ressaca pós-Heleno de Freitas e pré-Garrincha, aposentou-se em 56, após breve passagem pelo Uberaba.

Ondino Viera teve pouco contato com Danilo, mas influenciou a carreira de técnico do ex-vascaíno (Foto: Reprodução)
Ondino Viera teve pouco contato com Danilo, mas influenciou a carreira de técnico do ex-vascaíno (Foto: Reprodução)

Decidiu seguir carreira de técnico, sendo um discípulo de Ondino Viera, lendário técnico uruguaio responsável pelo início do Expresso da Vitória. Danilo teve pouco contato com o comandante, que logo deixou o time e deu lugar a Flavio Costa, mas foi o suficiente para conhecer o esquema tático 4-2-4.

Viera era tido como um revolucionário em seu país, mas principalmente no Brasil. Responsável por trazer consigo o 4-2-4, grande novidade em relação ao dominante “WM”, o uruguaio foi inicialmente taxado de louco por parte da conservadora imprensa esportiva da época. Anos depois, idolatrado pela mesma.

Inspirado pelo mentor, Danilo tentava reconstruir sua abalada reputação, desta vez por trás das pranchetas. Encerrado o contrato de jogador com o Uberaba, o Príncipe assumiu o comando técnico do time mineiro. Não teve muito sucesso – a experiência durou um ano. Sem conquistar títulos em Minas e desprestigiado, ficou seis anos desempregado.

Voltou ao futebol em 1963, “redescoberto” pela Federação Boliviana de Futebol (FBF). A missão não era nada fácil: comandar a seleção nacional naquele tão aguardado Campeonato Sul-Americano, sediado pela primeira vez em casa, após décadas de espera. Apesar de ser uma estrela internacional do futebol, Danilo era visto com muita desconfiança pela imprensa local, principalmente por sua pouca experiência como técnico.

A estreia não poderia ser mais alarmante. No “Paz del Chaco”, torneio internacional amistoso entre Bolívia e Paraguai, os bolivianos fracassaram miseravelmente, com derrotas por 3 a 0 e 5 a 1. A partir disso, a permanência de Danilo tornou-se praticamente insustentável. Jornais e torcedores exigiam a demissão do brasileiro, às vésperas da importante competição continental.

Mas, para o bem da história, a FBF bancou o Príncipe. Com a nova chance, Danilo decidiu por em prática os ensinamentos de Viera. Com adições. Em vez do 4-2-4, que já era ofensivo, optou por uma espécie de 3-2-5, com cinco jogadores alternando entre a grande área e a intermediária mais à frente. Influência para Rinus Michels e seu futebol total, anos depois? Nem o tempo disse.

Táticas à parte, o Sul-Americano de 1963 foi envolto em polêmicas. Contrariada, a tradicionalíssima seleção uruguaia se recusou a jogar nas montanhas bolivianas. Algo parecido aconteceu com a Argentina, que enviou um time de jovens atletas. O Brasil também frustrou os torcedores locais que sonhavam testemunhar a espetacular atual bicampeã mundial com os próprios olhos: poupou os principais atletas e trouxe um combinado de pouco prestígio, de times como Comercial-SP, Guarani, Taubaté e São Cristóvão.

Em pé: Max Ramírez, Eduardo Espinoza, Wilfredo Camacho, Roberto Caínzo, Eulogio Vargas e Arturo López. Sentados: Ramiro Blacutt, Máximo Alcócer, Víctor Agustín Ugarte, Ausberto García e Fortunato Castillo (Foto: Reprodução/Historiadelfutbolboliviano.com)
Em pé: Max Ramírez, Eduardo Espinoza, Wilfredo Camacho, Roberto Caínzo, Eulogio Vargas e Arturo López. Sentados: Ramiro Blacutt, Máximo Alcócer, Víctor Agustín Ugarte, Ausberto García e Fortunato Castillo (Foto: Reprodução/Historiadelfutbolboliviano.com)

Sem as principais potências da América, o torneio ficou imprevisível. Mesmo assim, pouco se acreditava na seleção da casa. Tampouco em Victor Augustín Ugarte, “El Maestro”, quase que unanimemente tido como o maior futebolista boliviano da história.

Isso porque Ugarte, apesar de sua longa e vitoriosa carreira, estava prestes a completar 37 anos. Era um raro remanescente do 8 a 0 de 1950. Seu rendimento físico era muito inferior a de seus companheiros e adversários. Ao mesmo tempo em que era tido como uma das poucas esperanças da Bolívia, também se discutia no país se a hora de sua aposentadoria já havia chegado.

Ugarte resistia, contudo, como o cérebro e a alma daquela equipe. E tinha um grande aliado a seu favor: a altitude. Sabendo aproveitar suas condições físicas em ambientes adversos de maneira muito mais inteligente em relação aos estrangeiros, levou grande vantagem naquele 1963.

A estreia foi em La Paz, diante do Equador. Outro time acostumado à altitude, embora não tão intensa quanto à boliviana. Mas o que o placar de 4 a 4 expôs foi a contraditória força ofensiva e fragilidade defensiva do ousado esquema tático de Danilo Alvim. O treinador, porém, bateu o pé e não fez mudanças. Deu um voto de confiança a seus comandados.

Como o formato era de pontos corridos, com seis rodadas, nem tudo estava perdido. O jogo seguinte foi diante da Colômbia, em Cochabamba. Logo aos quatro minutos, para desespero da torcida, que já vislumbrava uma dolorosa goleada, Botero abriu o placar para os visitantes. Mas brilhou a estrela de Máximo Alcócer, artilheiro boliviano daquele torneio. O atacante, que já havia marcado na estreia, fez mais dois ainda no primeiro tempo. O placar de 2 a 1 se manteve na etapa final, com direito a muita retranca e catimba dos donos da casa.

Os bolivianos, entretanto, só se empolgaram a partir da terceira rodada. Em La Paz, contra o Peru. Camacho abriu, e Gallardo empatou para os visitantes. No segundo tempo, ele de novo: Alcócer. Ausberto García, outro destaque da campanha, ampliou. León descontou aos 35. E a pressão peruana nos minutos finais não deu resultado.

Três jogos, duas vitórias e um empate. Era difícil controlar a euforia dos torcedores, mas Danilo tentava conter a empolgação de seus jogadores. Afinal, o próximo adversário era um velho conhecido. O Paraguai, que havia massacrado a Bolívia poucos meses antes. Mas, em Cochabamba, Castillo e García deram aos anfitriões uma fácil vitória por 2 a 0. Pela primeira vez, a equipe sequer havia sido vazada.

Era chegada a hora da partida mais decisiva e aguardada do Sul-Americano. Líderes, Bolívia e Argentina se enfrentariam em La Paz. Apesar de jovem, o time alviceleste tinha muita qualidade. O goleiro, por exemplo, era Edgardo Andrada, futuro ídolo do Vasco e que se tornaria muito mais lembrado por sofrer o famigerado gol mil de Pelé. Além deles, estavam atletas como Griguol, Vázquez, Savoy, Zárate e Rodríguez.

A Bolívia conseguiu abrir o placar logo aos 12, com Castillo. Rodríguez empatou pouco depois. Minutos mais tarde, Blacutt recolocou os andinos na frente. Na retomada do jogo, Rodríguez, de novo, igualou. Primeiro tempo eletrizante…

… E segundo tempo sofrido. Qualquer gol praticamente definiria o campeão daquele Sul-Americano. Foi aí que brilhou a estrela de Andrada, com várias defesas impossíveis. Entre elas, um pênalti, aos quarenta e tantos minutos. Em cobrança de Ramírez, o arqueiro salvou milagrosamente com os pés, no melhor estilo Victor, mandando para escanteio.

Diante da Argentina, Camacho fez o gol que praticamente deu o título à Bolívia (Foto: Reprodução/Historiadelfutbolboliviano.com)
Diante da Argentina, Camacho fez o gol que praticamente deu o título à Bolívia (Foto: Reprodução/Historiadelfutbolboliviano.com)

Mas a Bolívia não era o Tijuana, e a Argentina não era o Galo. Enquanto os alvicelestes celebravam, os bolivianos se preocuparam com o córner. Castillo cruzou na área. E encontrou Camacho, o talismã boliviano, que mandou para a rede, desta vez sem chance para Andrada. A felicidade argentina virou tristeza em questão de segundos no lance mais importante da história do futebol do país – ali se criava o termo “futebol camachista”, para denominar raça e entrega durante uma partida.

Para muitos, aquele jogo foi, simbolicamente, o do título. Bastava um empate diante do Brasil, na última rodada, para garantir a taça. Mas Danilo foi além. Fez com que seus jogadores vencessem por 5 a 4, como um recado aos ingratos e esquecidos brasileiros.

O duelo também foi marcante para outra lenda: Ugarte, que ainda não havia balançado as redes no torneio, fez logo dois. A consagração eterna do camisa 10 daquela inesquecível conquista. A festa dos torcedores nos dias seguintes foi algo jamais visto antes no país andino.

Já ídolo, Ugarte se transformou em lenda após o título de 63 (Foto: Reprodução/Historiadelfutbolboliviano.com)
Já ídolo, Ugarte transformou-se em lenda após o título de 63 (Foto: Reprodução/Historiadelfutbolboliviano.com)

O ídolo encerrou a carreira ali mesmo. Já o príncipe seguiu na Bolívia por mais algum tempo, passando a conciliar a função com o cargo de técnico do estelar Botafogo de Garrincha, Nilton Santos e companhia. Não teve muito sucesso, é verdade, e nem muitos convites para trabalhar nas obscuras décadas seguintes. Foi condenado ao esquecimento. Assim como a seleção boliviana, que, desde então, jamais conseguiu feito semelhante.

Excursão de heróis bolivianos com a taça mobilizou milhões de torcedores (Foto: Reprodução/Historiadelfutbolboliviano.com)
Excursão de heróis bolivianos com a taça mobilizou milhões de torcedores (Foto: Reprodução/Historiadelfutbolboliviano.com)

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