O eco de um gol silencioso numa tarde sombria de Santiago

O eco de um gol silencioso numa tarde sombria de Santiago

Por motivações políticas, a URSS se recusou a jogar contra o Chile no Estádio Nacional pela repescagem da Copa do Mundo

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Chile vs URSS
O capitão Francisco Valdés chuta contra uma meta vazia: Chile 1×0 URSS (Foto: Reprodução/Minuto Settantotto)

A disputa por uma vaga na Copa do Mundo gera muitas expectativas, até mesmo para as seleções que há décadas asseguram sua presença no maior torneio do globo. Quando se trata de repescagem, então, os sentimentos são ainda mais aflorados diante da possibilidade de carimbar o passaporte ou suportar um vexame histórico.

Entretanto, há um caso específico que misturou de certa maneira ambas as emoções. Pela primeira vez, uma equipe da UEFA deveria enfrentar uma da Conmebol para definir a fase de qualificação do Mundial de 1974, na Alemanha. Foi o encontro de Chile e União Soviética, marcado por envolver tensões políticas dentro do contexto da Guerra Fria.

No jogo de ida, em Moscou, no dia 23 de novembro de 1973, não houve problemas, apesar do golpe que recentemente havia deposto Salvador Allende e levado Augusto Pinochet ao poder no país andino. Com o empate sem gols, a vaga seria decidida no Estádio Nacional de Santiago, na capital chilena, em 21 de novembro.

As preparações e os rituais ocorreram de modo normal. Os jogadores do Chile vestiram seus uniformes, amarraram suas chuteiras e foram para o gramado saudar os milhares de torcedores locais. Deram o pontapé inicial, trocaram nove passes com tranquilidade em direção ao gol até o capitão Francisco Valdés, sozinho, estufar a rede com um forte chute.

Um mero detalhe, porém, transformou o cenário mencionado em uma farsa. Simplesmente inexistiam oponentes do outro lado do campo, pois a URSS havia boicotado a repescagem, fato que daria aos donos da casa a vitória automática. Ou seja, não havia a necessidade de montar aquele circo, salvo o intuito de fazer propaganda política.

É justo recordar que nem todos os jogadores estavam satisfeitos com os eventos no país. Aqui mesmo no Alambrado, já falamos sobre o caso do “opositor” Carlos Caszely. Enfim, para não deixar na mão os cerca de 20 mil espectadores, a seleção chilena jogou um amistoso contra o Santos, que lhe aplicou uma acachapante goleada de 5 a 0. Mas essa é uma história para ser contada em outro momento.

Com a queda do presidente democraticamente eleito, e de inspirações socialistas, é importante lembrar, o governo ditatorial perseguiu, encarcerou, torturou e assassinou mais de 40 mil pessoas. O Estádio Nacional, inclusive, foi palco dessa barbárie ao funcionar como prisão e local de tortura improvisados, entre setembro e novembro de 1973.

Pelas atrocidades lá cometidas contra as pessoas “indesejadas” para Pinochet, a URSS solicitou a alteração do controverso palco, se possível para alguma nação vizinha, o que fora negado pelo então presidente da FIFA, Sir Stanley Rous.

Assim, “por razões morais e em respeito ao sangue derramado de patriotas chilenos”, segundo comunicado da época, os soviéticos se recusaram a jogar naquele centro de detenção ilegal e, logo, classificaram o Chile para o Mundial.

No Velho Continente, o escrete sul-americano não se saiu tão bem e voltou cedo para casa, sendo eliminado na fase de grupos com derrota para a Alemanha Ocidental (1×0), futura campeã, e empates diante de Alemanha Oriental (1×1) e Austrália (0x0).

Estádio Nacional
Memorial do Estádio Nacional, em Santiago (Foto: Divulgação)

Hoje, o Estádio Nacional conserva atrás de uma das metas um setor de arquibancada feito de madeira.

No letreiro, os dizeres “um povo sem memória é um povo sem futuro” prestam homenagem às vítimas da ditadura e relembram o passado sangrento para que ele nunca mais se repita. Uma forma de resistir às feridas do tempo.

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